Description
Surgiu diante os meus olhos, o homem olimpiano, ou o que sobrara de uma guerra de gregos e troianos, com olhos em carne viva, rosto inchado e com o moletom manchado de sangue. Escondia as mãos nos bolsos laterais da calça, tímido e nervoso, vulnerável. Custou a olhar-me, pois parecia exigir de muita energia vital - que muito lhe faltava -, mas quando o fez, tive dificuldades para respirar. A dor atravessou as retinas castanho-noturno, e eu quis atravessar suas costelas a unhadas e, arrancando do peito o coração, cuidar dele com carinho. Guardaria sua alma num jardim florido até que, recomposta, ela pudesse voltar a brilhar. Era Ícaro, novamente, em queda feroz, um anjo não mais alado. Não pedi que me explicasse o que acontecia, muito menos mostrasse onde doía. Deixei-o à vontade em seu sofrer, mas não permitiria nunca que sofresse em total solidão. Chovia bastante do lado de fora, mas ainda assim, o aguaceiro não era tão grande quanto o que vertia de Ícaro, em sua cascata lacrimosa, soluçante e assustadoramente dolorida. "Pudera eu viver sem coração", ele repetia vez ou outra, com punhos cerrados. E, de todas as cenas mais aterrorizantes, como as torres gêmeas desabando ou um furacão devastando uma cidade, nenhuma delas conseguira, naquele instante, ser pior que ver, indo de céu ao inferno, numa queda rápida, a alma de Ícaro ser devorada pelas feras. - Vivo, dia após dia, esperando por um sol que nunca amanhece aqui dentro. Sua voz veio baixa, quase sussurrada, e sua frase fez minha alma arder.
Prólogo
